sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

a torre (ou 'a casa de deus')


Eu sou o raio. Eu sou a causa.
Entre tantas escórias e falsos deuses, eu sou aquele desprovido de virtudes. Eu era um assassino, um bandoleiro; um filisteu conjurado com os propósitos mais nobres... mas, por alguma razão oculta, tornei-me aquele que ascendeu à vontade interplanetária das entidades tetraplégicas adormecidas do Mar Báltico; fui abençoado e renascido no solo dos rituais pagãos e primitivos de tribos dizimadas.
Um pedido sublime, sem dúvida.
Dessa vontade, e do sangue derramado, adquiri o sopro da vida em meu novo ‘fado’, sim, pois não há fardo nessa herança: fui coroado com esse dom. Erguei aos céus e caia por minha vontade, pois não há “a casa” tampouco “deuses”: os que aguardaram ali, nas filas dos holocaustos originais, caminharão sob os corpos fustigados da fúria dos elementos por entre crânios esmagados, sonetos desperdiçados e chacinas indecoráveis.
Afinal, o fim estava próximo mesmo. Sem metafísica. No fim, no aguardado momento da revelação,  não havia segredo, apenas constatações.
Tijolos moídos, restos mortais e enxofre. Pavimentos da estrada à frente.
O raio é incerto. A fúria, definitiva...

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

quando o circo passou na vila

quando o circo chegou, foi um evento daqueles... um acontecimento tão singular, que só eu me recordo do ocorrido. de todas as pessoas que compartilharam as minhas vivências e espaços, de todos os residentes que me viram subindo a rua de casa para comprar pão todos os dias, ou em busca de revistas perdidas e quadrinhos em lixeiras nos bairros ricos; parece que só eu vi o circo passar na minha vila. acrobacias, palhaços altos e esguios, malabaristas jogando pinos na altura dos prédios da rua da feira. era um sábado. nossos pais estavam de folga e todos pareciam felizes, de mãos dadas com quem amamos um dia. algodão-doce rosa. eu, tão medroso, aguardava a minha vez na fila para pular na cama elástica. quando chegou a hora, eu estava lá, todo amedrontado, não conseguindo brincar ou pular no aparelho, agarrando-me às tiras elásticas do aparelho em uma posição semifetal, mijado; chorei pelo meu medo de estar ali, no centro dos acontecimentos. naquela rua cheia de gente e palhaços sádicos apontando o dedo para mim. delírios em dias febris. sou eu, aquela criança. para sempre. um prato cheio para os psiquiatras, conversas de cantos e prescrições experimentais. e todos, todos vocês estavam lá! rindo de mim na minha vez; o mais estranho, mesmo, era isso: o rosto de todos espectadores... sim, eu me recordo perfeitamente; vocês, isso mesmo, todos vocês estavam lá! testemunhando, e roubando para sempre, aquele momento insólito e íntimo de abdução involuntária da minha infância.