quarta-feira, 27 de novembro de 2013

mallo e mauzinha

– por 10 gramas o bagulho vai, a noite estica, filha.
(ele tava a fim de ir, tava na pegada de seguir à noite, então fomos lá naquela porra de festa zuada de sempre do Tino e a partir dessa frase do Mallo, a gente seguiu atrás de um pó; e fazer o quê? era o tal do Zeigeist, era o que a gente buscava na hora. era a nossa pegada)
– eu sei lá, eu quero sair correndo, voando por essa rua, Mauzinha!
(e a gente pulava os degraus de mão dadas, eu amava ele pra caralho, ele me dizia toda hora que eu era linda; porra, a gente dava as mãos, saía sorrindo à noite naquela pegada de chegar mais rápido na festa!)
-o Tino tá aí, Bezerro?
(Tino curtiu com a gente, e a gente já tinha o que queria, a bucha; Mallo pegou mais grana emprestada e a gente pegou um táxi; entramos com cuidado pelo quintal e seguimos para o nosso quarto; cheiramos tudo e era bom demais, não vou negar e foda-se; muitos morreram, muitos morrerão com essa porra, vão perder uma pá de coisas, mas a parada é que se pudéssemos congelar aquele momento no tempo; lá estava eu e meu amor de mãos dadas, voando os degraus pela noite e juntos na doideira: durma com esse barulho, imagem da felicidade distorcida da sociedade!; a trepada às vezes era boa, e às vezes era uma merda. depois que eu fui perceber, descobrimos que não havia esse “amor”, sabe? gostávamos da coca, depois disso – dessa maldita confissão consentida e mútua – ficou mais fácil curtir um pó, porra; era isso, a gente se sustentava, aturava; se gostava)
-Mauzinha, vamos comer um pastel? Mó fome, tem feira hoje, amor!
(levantamos, e aquilo era uma dica para levantar e começar a nossa busca pelo Santo Graal, tomamos umas cervejas que sobraram de outro dia, demos as mãos e saímos; pastel e caldo de cana de mãos dadas pela feira, um monte de gente dando um salve pra gente)
-Mauzinha, o Tygra me deu um vidrinho, filha! Porra, o pessoal é bom comigo, meu deus! Que fartura!
(vagabundo adulava o Mallo porque ele era uma boa companhia, tinha respeito por ele, e mesmo quando tava bicudão tentava ao máximo não deixar ninguém se fuder no meio da noite: pagava táxi, protegia o pessoal de treta errada nas festas quando um se estranhava com o outro, buscava o pessoal na delegacia e pegava a causa para ele; dessa forma, ele cuidava de casos até de graça; o pessoal da grandona foi subindo e prestigiavam o Mallo muitas vezes; a gente nunca ficava sem pó ou dinheiro; diziam que "o muleque era foda"; "ele livrava toda a rapa")
– Ó, o Lindomar me ligou agora e disse para a gente colar lá.
(e a gente ia. sem tempo ruim, eu tô dizendo que era bom pra caralho e não vou cair nessa de arrependidinha de Cristo sendo escrota com o mundo e pregando o arco-íris; hipocrisia não é comigo: a porra da branquinha me proporcionou os melhores anos da minha vida e eu ia garantir uma boa quantidade de memórias por m² até quando puder)
- Mauzinha, o Lindomar tá ali te esperando, vamos colar lá hoje também?
(a gente trocava de namorado umas vezes e tava tudo de boa; um dia esse Lindomar, amigo de rua do Mallo, disse que me achava mó tesão e tal; e esse cara tinha uma mina bem branquinha, chamada Felícia, linda; os dois combinaram esse lance de menáge e o caralho e o lance é que eu não gostei de chupar buceta, mas até topava trepar de vez em quando com o Lindomar; o Mallo curtia a Felícia, ficava lá depois me dizendo o que fez com ela e eu dava risada; depois da primeira vez a gente fazia esse lance raramente, só para renovar o repertório. todo mundo ficava feliz e gente renovava o estoque)
– Mais uma coleta, filha!
(dez gramas, depois das cinco a gente ficava empolgado, era o que o Mallo dizia de fazer um combo do Street Fighter: juntar umas duas coletas, três; o foda é que negócio um dia ia acabar, eu corria contra o tempo para salvar mais tempo)
– Vamos pegar um táxi e vamos pra Lapa? Tá rolando um Psy, trance e tal, filha.
(a gente ia, som de merda, gente chata… voávamos pro samba e pro buteco e destilávamos umas da Alcione, do Cartola e tudo se purificava; a gente se revezava indo pro banheiro, na pegada e no combo)
-Mauzinha, eu te amo!
(e eu acreditava)
– Vamos voar!
(demos as mãos e sobrevoamos as casas, na pegada de chegar logo em casa)
– Mauzinha, eu tenho uma coisa para te contar, filha…
(ele me pareceu estranho, parou a nossa corrida para casa, ainda segurava minha mão, parava de correr, estaladão daquele jeito, até deu para ver algo por trás daquela máscara que era sério)
-Mau… Mauzinha (segurou o meu rosto delicadamente) eu vou parar com essa porra de vida. Eu não aguento mais…
(ele começou; me disse que todos os parentes estavam na cola dele, que já tinham manjado toda aquela parada nas festas e que ele não conseguia nem disfarçar mais, que segurava os sobrinhos estalado e aquilo não agradava os irmãos, que em todas as fotos de família ele tava bicudão, acelerado no turbo, dando B.O, que achavam que ele tinha um futuro no escritório de advocacia, que queriam montar uma parceria com ele, alugar um lugar para ele trabalhar)
-Mauzinha, por favor… Faz isso comigo…
(ele me disse com a maior sinceridade… eu o amava, mas como eu disse, vi tudo aquilo desmoronar porque a gente não era de aceitar opinião de quem tava de fora, de gente que tenta dizer o que temos que fazer; disse para ele mandar todo mundo à puta que pariu, para nos mudarmos e seguir uma vida nova)
-Mau… esse bagulho tá acabando comigo…
(eu fiquei com raiva dele, saí correndo para longe xingando ele de filho da puta e o caralho; eu, na verdade, achava cedo demais pro show acabar, pro bar fechar, pra pista ser interditada… eu só queria dar um tiro, levantar a cabeça para trás em busca daquela cheirada que me elevou… que mudou a minha vida, que foi a melhor cheirada do mundo: quando um carinha que me pegava no banheiro me apresentou o pó, eu tinha dezenove anos, tava numa festa em casa de prima; depois daquela porra, tudo tava certo e eu buscava sempre aquela sensação de altura, de leveza, de tudo que eu não tinha sentido até aquela noite no banheiro; eu buscava aquele tiro, perfeito, até hoje; e eu tinha conseguido viver a minha vida assim sem ter que dar satisfações para ninguém… Mallo … nos conhecemos num boteco lá na Vila e ele tinha me olhado a noite toda, me acompanhou até lá fora quando entrei no táxi, esticou a mão pelo vidro e me deu um guardanapo com o seu número do celular e e-mail, escreveu embaixo “você é a menina mais linda que eu já vi, adorei o jeito que toma cerveja e fuma, e levanta a cabeça soltando fumaça com insolência; deixa eu te ver mais”: ele me ganhou naquela noite, e eu sabia que ele cheirava e foi perfeito até agora...eu achava que ele me traia agindo daquele jeito, com aquele papo de “vamos arrumar nossa vida, se limpar, trabalhar das seis às cinco da tarde, pagar aluguel e assistir sessão na matinê”... uma bela de uma decepção...saí chorando, larguei ele com aquele papo de bosta…. e ele foi atrás de mim… gritei, fiz escândalo na rua e chamei um táxi, e quando ele veio conversar comigo, dizendo que queria explicar, que tinha que fazer isso comigo, que não conseguiria sem mim, eu disse pro motorista do táxi que parou que aquele cara tava tentando me estuprar.. o cara puxou uma arma do bolso da jaqueta e disse para ele se afastar… deu um tiro no pé do Mallo... ele caiu, segurando o pé, estava inconsolável, chorou, e sentou na sarjeta e me olhou indo embora no táxi… eu ri com ele segurando o pé e se contorcendo… eu dei um sorriso vendo aquela cena… ele ali, pela janela, todo sem dignidade… o motorista me olhou e gargalhou, disse que tinha que andar com cano, que a profissão tinha disso, depois puxou mais papo e eu cedi, andamos pela cidade; ele passou a mão na minha coxa e o resto era história)
A voz de Mallo nunca mais existiu nessa história.
Fiquei sabendo que ele se mudou depois disso. Que tentou se limpar, mas a nóia tava muito brava, que via bicho de noite, achava que tinha gente indo atrás dele cobrando dinheiro, e uma pá de vozes que não sabia mais o que era real, fiquei até sabendo que numa dessas ele começou a se prostituir, dar o cu por pó, mas era boato, sei lá... Lindomar me contou que ele se juntou num quarto numa zona e morava lá de favor/pena.
Não foi o pó que acabou com ele. Fui eu.
O pó que me ajuda a viver nessa vida fudida, que me ajuda a trampar, a segurar meu filho, a dar um beijo no marido, a aguentar as festinhas de firma, no happy hour, as reuniões de família e a seguir com o espetáculo interminável de aberrações. Eu acabei com a vida do filho-da-puta: a gente amava tudo aquilo, o pó e as viagens intermináveis, a busca pelo nosso Graal diário, mas ele só curtia a escalada de mãos dadas, correndo estalado de mãos dadas comigo e fingindo que a gente voava. A gente amava o pó e ele nos dava o melhor amor que a literatura, a poesia e o caralho jamais imaginou. A gente estava lado a lado naquela loucura.
Hoje, o que mantém viva são os meus filhos, mas eu preciso dessa porra ainda, Mallo…
Que pena. Eu acabei contigo.
A ironia das ironias. O sarcasmo do sarcasmo.
Ainda amo dar uns tiros, mas sempre quando tô lá, colocando a cabeça para trás em uma busca solitária pela primeira viagem num banheiro quando era adolescente, lembro da gente, da gente voando de mão dadas numa velocidade incrível, a sensação de altura…

E a vida nem foi cruel comigo...