quinta-feira, 24 de maio de 2012

a última criança da cidade

Vou falar. Vou falar sobre a origem da grande bomba que se iniciou em minha cabeça, e das conseqüências que ela desencadeou na vida dos seres desgraçados que eu chamo de “pai” e “mãe”. Vou falar: não estão me coagindo ou aplicando alguma terapia de livro de psiquiatria alemã; falo por que quero e isso é o que vale aqui, tá?
Sem mistificações.
A “bomba”? Tá...
O que chamo de “bomba” é um pensamento. Este se originou na minha mente cedo, quando observei uma mariposa presa entre o vitrô da janela: tínhamos aquela janela que deslizava para cima e para baixo e era presa através de coisas que eu chamava de “borboletas”. Elas se pareciam com uma borboleta mesmo, e (confesso) estremeço ao pensar nelas... Minha mãe ficou com medo de uma mariposa que pousou no vidro da janela, e para afugentá-la decidiu subir a outra parte. Isso aprisionou a enorme mariposa entre dois vidros espessos do seu quarto.
Ficamos inertes. O desespero na minha alma era sufocante. Aquele pobre e enorme bicho mal batia as asas pela falta de espaço. Minha mãe tomou a decisão que ninguém gostaria de tomar:
-Vamos deixá-la assim. Com o tempo ela morre. Eu não agüento olhar mais para essa janela.
Ela se mudou para o meu quarto. Fechou o seu com tábuas e pregos enferrujados...
Eu tinha nove anos.
Sonhei com a criatura aprisionada... com as suas enormes asas fazendo uma esforço patético e descomunal; para (no máximo) tremular pelo esforço repetivo e convulsivo da tarefa e da dor envolvida: ali, só haveria a inexpressividade do animal asqueroso, preso numa tela viva e destinada a público nenhum para a sua morte. Até os assassinos em massa e estupradores tinham um público - ou a palavra de deus na hora do adeus dessa terra na hora derradeira. A mariposa e aquela força invisível: um músculo alienígena de sua constituição dantesca era imperceptível aos nossos olhos, à nossa era e espaço.
A mariposa permanecia lá. Morávamos num sobrado afastado de qualquer lugar ou bairro reconhecível; enfim, tudo era distante . Saía para brincar lá fora, e – de longe - avistava a mariposa presa entre os vidros no primeiro andar do nosso mausoléu afastado de tudo. Ela sofria, eu tinha certeza.
Eu sofria. Eu era a mariposa. Eu era a maldita mariposa.
Pensei em atirar uma pedra lá de baixo; quebraria o vidro e a maldita criatura flutuaria até o chão de escombros e imundícies, inerte pelo esforço repetitivo das duas enormes e escuras asas com desenhos de olhos e quimeras sombrias. Eu cuidaria dela.
Mas se atirasse a pedra no vidro, mamãe saberia que fui eu. Incontestável era a certeza e a angústia de não ser culpado ou merecedor de alguma dúvida da misericórdia humana. Não, não mesmo. Eu era a única criança naquelas redondezas, naquele bairro cheio de escombros e cartuchos de balas entre o concreto antigo, naquele reino que seria desbravado por mim.
A única criança na cidade.
Desse jeito, permanecendo assim, a mariposa sofreria mais. O calvário seria longo e árduo. Eu também. Não consegui mais sentar em volta do rádio e ouvir as aventuras de capa e espada, ou os casos macabros narrados nas novelas da capital. Nada. Nem um poema lido por Carmen através da estática me tirava daquele transe, do pensamento do terrível sofrimento excruciante da mariposa negra-cinza com olhos e quimeras em suas asas. Uma pedra não a salvaria de lá. Sinto muito.
Mamãe chegou. Trazia sacolas e sacolas com alfaces escuras, nabos duros como um fêmur, recortes de jornais antigos e outras coisas.
-Melhor comer, não é?!
Comemos.
Sempre era assim. Sentávamos no chão sob um tapete vermelho com um círculo dentro de outros círculos. Eu os contava desde que tinha consciência: eram 27 círculos dentro do círculo principal, todos em uma linha preta os delimitando. Esse número era tão forte que - de forma monomaníaca - coloquei na cabeça que seria a idade da minha morte: um círculo de cada ano. No meio de tudo aquilo, enfiei uma alface com bichinho na boca e apontei com o indicador o nono círculo do tapete rubro; aquele era o círculo atual. Eu viveria vinte e sete anos...
Mas..quantos segundos – minutos - anos viveria aquela maldita mariposa ?!
Eu era um pirralho, mal tinha nada no corpo, nada; mas pensava que apenas o sofrimento do viver era um tormento deveras insuportável para aquela mariposa aprisionada; diga-me, quantas crianças já pensaram nisso em uma vida?
...
Talvez muitas. Talvez. Mas ora se esquecem, ora lembram-se depois, aterrorizadas e adultas com um travesseiro molhado de suor na orelha: a consciência lá, tateando um teto escuro - como um morcego cego na noite - as lembranças daquele tempo imemorial, da infância terrível e adormecida. Despertando de um pesadelo entorpecido como um gigante no momento da clausura; e os adultos lembravam-se, lá, em algum momento ou sabá... “Lembrar” era um hábito ruim no mundo dos adultos.
No entanto, eu permaneci; pensamento infante envolto em nove círculos pretos feitos em um tecido preto sobre o vermelho; vinte e sete anos seriam o bastante para acabar com tudo isso e descansar: minhas asas desistiriam de fazer esforço, cessariam, romperiam com a pressa, e o descanso seria merecido. Justo.
Queimem o tapete, mas (chorando) deixem a pobre mariposa em paz!!!!!!!!!!!!
Eu gritava.
Por quem eu chamava?! Mamãe não me via chorando?! Eu era o único garoto da cidade, o único menino dos escombros, na única casa no país que tinha um rádio intacto depois dos aviões rasantes e imponentes: eu era o único homem nesse mundo do absurdo.
Comemos as alfaces. Mamãe foi ao banheiro: ela ficava lá por horas a fio, deitada no chão branco de azulejos quebrados lendo os jornais antigos que embrulhavam os vegetais. Ela me ensinou a ler, eu fazia o mesmo às vezes.
Andei na ponta dos pés. Coloquei a orelha na porta que guardava o santuário de morte mais odioso, o que não prezava a morte como passagem ritual e, sim, nada mais era que um símbolo para a criatura que tem o poder de voar como os homens queriam há anos; e esta (a portadora da dádiva incompreendida) era castigada pela barbárie do mundo dos adultos. Eu não ouvia nada. Queria ouvir aquelas enormes asas batendo no vidro, desenlaçando do abraço da morte na armadilha do vidro.
Bati na porta. Chutei. Nada. Mamãe não ouvia. Era a madrugada com a lua mais brilhante de todas. Um enorme olho ciclópico com uma íris alva no firmamento admirando um lugar sem vida.
Peguei um enorme baú que tinha quase o meu tamanho e o tirei do chão com a cólera contida do desespero e da morte; eu era o libertador da angústia, o que traria a Morte ou a Vida como conforto. No caso da minha amiga, eu não sabia mais.
A porta abriu. Mamãe gritou. Barulho.
A noite projetava uma luz enorme no vidro e as gigantescas asas eram sombras escuras e terríveis que preenchiam  quarto todo. Eu gritei, e elas não se mexiam; só ficavam ali, projetando a sombra mais fantasmagórica pela imensidão do sobrado semi-destruído.
Eu gritava, sangrava na alma. O horror era absurdo, aquelas enormes asas fazendo sombra no quarto mataram algo dentro de mim. Gritei, mas ninguém ouvia naquela cidade, naquelas redondezas. Mamãe me abraçou e olhou para a sombra enorme no quarto e gritou comigo, o arrepio do corpo dela, os pêlos eriçando e a loucura subseqüente que viria foi sentida no abraço dela. Mal ela conseguia testemunhar a visão ou proteger-me... Ou salvar a si mesma do horror.
Cai.
Ela também.
Desmaiamos.
O sonho foi um nada. Um vale de sombras entre uma cidade sem nada. Um nada no meio do nada. Um reino de coisas e casas destruídas pela ira do homem.
Eram as asas da mariposa que pousavam e projetavam a sua sombra sobre nossa existência, eram as asas que nos fazia adormecer.
Acordei com mamãe por cima de mim. Ela estava toda babada.
A mariposa não estava mais lá. 
Nada me ocorreu. Mas no fundo eu sabia que ela tinha se libertado com o barulho ensurdecedor de duas criaturas enlouquecidas por uma imagem inenarrável. “Ela se arrastara – pensei - caída por entre o quarto; a lua era branca e virginal, suas asas ganharam a força e ela deve ter feito o seu vôo trôpego pela madrugada”.
Mamãe acordou. Me viu em pé, levantou-se lentamente e me abraçou. Olhei para o seu rosto aterrorizado. Depois para os seus lábios.
Uma enorme asa negra, com olhos de quimeras, farfalejava violentamente para fugir de dentro da sua boca.