quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

os bunkers

Aqueles que aguardam as cartas nas trincheiras têm somente um desejo: apertar o gatilho antes do inimigo. Aqueles que esperam impacientemente as letras trepidantes de um amor perdido no outro continente querem somente a consolação dos que tem a caneta nas mãos; os fuzis permanecem intocáveis, polidos e aguardando o berro cego entre uma manhã cinzenta em Lille. Aqueles que querem tirar as nossas vidas têm filhos esperneando por pedaços de pães, mulheres quase solteiras e ferocidade em ruas desertas nos guetos; despejam no ar o protesto insano em palavras incompreendidas na primeira infância. Aqueles homens jamais serão os mesmos, aquelas mulheres erguerão uma nação, aqueles moleques famintos ouvirão um barulho tão alto que a proliferação daqueles desejos ecoará por décadas; entre nós, filhos da bomba: os que esperam alguma coisa no meio da cacofonia de restaurantes por kilo, filas na loteria e diversões caras. Aqueles que esperam não mais a paz, e sim a bomba.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

epifania, sol do meio-dia

 Descia pela escada caracol quando o celular tocou. Atendeu. Chiado. Gritos ininteligíveis. Cacofonia.
“... luta... três horas da manhã... é o que aconteceu”
Cai a ligação. Mais um passo.
“Caralho”
Voltou a descer. Passos rápidos, coordenados e ritmados durante anos consideráveis na repartição; papeladas trajeto banco-escritório, beijinhos para as secretárias, sorrisos de atendentes gostosas, salgadinho Fofura, churro de um real, Street Fighter com o Blanka no Centrão “não tem pra ninguém, mano”.
Tocou de novo. Diminui o ritmo.
Descia. Os passos mais cautelosos, mas sempre cadenciados e harmônicos, que nem samba das antiga.
Botãozinho verde.
“... Márcio... cê... mãe... tua MÃE!...”
Fim. 
Estalou. A cabeça foi à milhão no rasgo de consciência, no instinto aranha de sentir o perigo de longe. A cabeça gritava. Implorava.
“Que número é esse?! Porra, não tenho identificador de chamadas.”
Um pensamento idiota passou pela cabeça, uma associação no meio do caos do meio dia “Chamavam isso de olho mágico, né?”.
Milésimos de idiotices entre segundos de terror, apavôro e insegurança. Chegou ao final da escada e pediu para a Marina:
“Preciso ligar pra casa. Por favor, Marina!”
(que gostosa!)
Era o decote. Um pensamento, um flash, um instinto isento de culpa. Pura distração, uma fuga inconsciente daquela realidade momentânea que quer redenção: não culpem o menino.
“Aconteceu alguma coisa, fio?!”
“Não sei!! Me ligaram no celular e eu não entendi porra nenhuma, falaram um bagulho da minha mãe no meio e eu tô aqui: no apavôro...”
“Calma...”
Um rasgo de doçura na voz dela. Coisa materna repousada, adormecida no âmago da mulher jovem. Condescendência momentânea. Desabrochar.
“Liga sim, vai. Depois eu coloco uma observação dizendo que a ligação foi “motivo pessoal”, certo?!”
...
“Tô cagando pra isso” pensou.
Dedos rápidos. Mnemônico. Números digitados, destreza. Facilidade com números. Escola interrompida.
Dor.
Toca, toca, toca. Ninguém em casa.
“Caralho!”
“Que foi? Não tem ninguém?!”
Meneou com a cabeça. Apavorado e perdido. Desespero, raiva.
“Marina, posso ligar pra celular? É questão de vida ou morte: depois eu pago essa porra; mas eu preciso ligar agora!”
Não era um pedido, era a urgência. Legítima. Quase nobre.
E não me venham com interpretações tendenciosas, pois eu defendo o menino; chega uma hora em que a hierarquia não tem importância no mundo e as palavras são imperativas, dotadas de força entrecortante da desesperança e agonia: nada detém esse ímpeto. Nada. Hierarquias, gradualmente, perdem seus propósitos. Significado.
“Já ta ligando, né?!Ai ai, viu?! Depois cê se acerta com o Sr Osmar...”
“Sr Osmar o caralho! Nem quando meu pai era vivo eu chamava de senhor!”
Raiva. Aê, era coisa antiga.
“Lívia! Cê ta aonde? Tá no quintal? Sou eu, porra! Minha mãe ta por aí! Ãhn! Vai para lá, bate palma! O que foi? Recebi uma ligação estranha, toda chiada falando da mãe e tô apavorado! Vai lá, por favor, fia! Tira a minha agonia!”
Tempo.
Marina digitava no teclado. O decote permanecia. A beleza dela era tardia, porém compensadora. “Ela é bonita” pensou com certa pena.  O fundão da repartição era o mesmo. Um monte de gente fingindo se ocupar, e-mail, Orkut minimizado e TV online para ver/rever os gols da rodada na hora do almoço com caipirinha para quem tem VR. “Márcio, essa corja não faz nada a não ser arrancar o nosso côro pra ficar rico, filho”. Pai. Distância. Caixão. Velas entre um corpo coberto por jornais de emprego de 0,50. Mãe com o filho comendo Miojo e ganhando roupas grandes dos amigos e dos vizinhos. Cesta básica. Mamãe sozinha. Trabalho, infância perdida, dores pela rua, uma arma na mão, poder da decisão, papéis, um troco pra casa, umas panelas novas. Pizza uma vez por mês. Celular. Salário mínimo. Mamãe e a incerteza do terror no apavôro de palavras entrecortadas de uma ligação, a mínima possibilidade de ligar para casa. Sem créditos: sem visibilidade, sem ação, apenas à espera da notícia que virá; a que irá devastar, sem créditos: sem esperanças para a velhinha que dava “bença” todos os dias de manhã, tristeza quando pegou o filho com um beck na caixa de sapatos. Sem nada, sem mãe, sem pai, sem respostas. Sem crédito da sociedade.
“Márcio, tua mãe tá lá no sofá, tadinha! Eu cheguei gritando e apavorando e ela tava cochilando no sofá vendo o jornal! Vai trabalhar, menino! Tá tudo bem, fio. Vai almoçar, a mãe mandou um beijo. Fica com deus.”
Barulho monotônico. Volta. Recuperação.
“Márcio, cê ficou cinco minutos nesse telefone ligando pra celular!! Lembra do que o Sr Osmar falou de ligar pra celular?? Cinco minutos!!! Cê tá pêgo, tio!! Vai lá explicar isso agora que eu não quero bucha pro meu lado não, viu? De novo, não!”
Pausa. Fôlego recobrado. Intensidade. Ela é bonita... Uma pena...
“Depois sou eu que agüento essas merdas com o Sr Osmar, Márcio!!!”
Não disse nada. Palavras ininteligíveis ressoavam, novas interpretações surgiam. Gratidão pela compreensão.
Subia rápido pela escada caracol quando o celular tocou novamente. Atendeu. Chiado. Ininteligível.
Era a confusão, o caos que trazia a voz da mudança no chiado.
Nunca soube quem era, mas soube o que era, e o que acabou sendo...
Na cacofonia das ruas, a repartição se distanciava a passos cadenciados, harmoniosos, decididos. Palavras incompreendidas entrecortando rotinas, trazendo epifanias no solzão do meio-dia onde se come cachorro-quente a um real com suco grátis. 
Cacofonia distante.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

alma xifópaga

Tem esse ódio que não cabe dentro de mim, é uma metástase incurável, uma metralhadora com balas impacientes clamando pela liberdade.
É uma coisa encostada: tava lá num canto sujo e esquecido, cheia de sementes de girassol de um papagaio que vivia lá há “muito tempo”. Por tantas eras permaneceu lá que agora é um instrumento maravilhoso, trata-se de uma arma prática, um achado: um daqueles ocasos do destino que te faz dar benção ao que não acredita.
Indispensável.
E ele se molda dentro da alma – esse ódio –volta e meia puxa a gente para um lugar agradável, e que é promessa de um alívio perante as merdas da vida; esse ódio te promete muito, ainda mais quando justificado e legitimado pela injustiça. É o nosso aval, a desculpa para descer enxofre nas veias e tocar o puteiro com essa explosão do oculto.
Às vezes vivo pela espada.
E ela, às vezes, vive por mim.

sábado, 17 de julho de 2010

o monstro de dois corações


Tenho um coração desenhado no caderno. Tinha. Ela que fez. Desenhou, uma vez, com uma canetinha vermelha e fez um jogo de cores. Milhões de coraçõezinhos unidos “uns aos outros” formando muitos corações. Uma infinidade. Coisa geométrica, trabalhosa e, de certa forma, genial. Mas reparo, reparei, na verdade “paro pra pensar”, que, dois corações desenhados e unidos um ao outro formam, formavam, uma imagem pavorosa. Conhecida.
Deu o estalo, dera, e nesse momento “eu percebi” que a aberração que me atormentava em noites ígneas era o monstro que possuía a forma de dois corações: a imagem pavorosa da minha infância era ele, em vermelho, pingando sangue-cor-de-canetinha. Pavoroso, assassino; desejando chupar o sangue pelas minhas orelhas.
Dois corações unidos. Sobrepostos em jogo, um encaixando ao outro, foi assim mesmo...
-Amor, tenho medo de ti.
Disse isso a ela naquela tarde: matei deliberadamente, e inconseqüentemente, os beijos que iriam nascer e o amor que iríamos cultivar, brotar - e quem sabe-  sufocar de forma cruel no nosso futuro relacionamento. Não nasceu: “morreu” naquelas (“minhas”) palavras. Matei.
-Por quê?
-O monstro, Cláudia! O monstro da minha infância!! Foi você que o criou!
Cara de tacho, estupefata, abobalhada; uma cara estúpida e redonda: levaram, na verdade se foram, alguns segundos para eu achar ela feia, gorda e ordinária. A criatura d’ela me devia noites que não dormi, xixi que não fiz na escola e coragem para enfrentar a morte quando papai precisava. Esse monstro me espreitou até a adolescência, e ela (CLÁUDIA!!!!) era a arquiteta doentia desses castelos retorcidos que eram a minha mente semi-adulta numa tarde na escola cursando o supletivo à noite.
O monstro me deixara lerdo, por isso estava lá com os “lerdos”.
Cláudia era patética, nos unimos por nossa essência malcheirosa, deformada e, de certa forma, imaculada na nossa ignorância consentida.
Ela era o monstro. Desenhou no meu caderno.
Jamais pensei que dois corações unidos, um completando o outro em direções contrárias, formassem a imagem que me enlouqueceu e tirou a mulher que me amava, pois (mais tarde) me foi revelado que ela me amava incondicionalmente, e estava morta àquele instante da epifania em Lisboa num cemitério pobre.
Pobre Cláudia, jamais soube o que quis dizer; passei a evitá-la todas as aulas e abracei uma amiga dela certa noite. Elas se diziam “melhores amigas”. Cláudia sumiu da escola e eu me engracei com a “bela” melhor amiga.
-Que monstro?
Contei. Disse a “essa”, que se dizia interessada por minhas histórias de madrugada enquanto buscava um papel higiênico.
-Você é louco, mas eu gosto.
Naquela noite o monstro voltou. Agitei-me como louco de terror. Hospital. Luzes. Tomografia. Eletroencefalograma. Exames. Amostras.
Eu disse que era o monstro.
-Foi Cláudia que me fez esse mal, doutor.
Se riam. Saiam à francesa.
O monstro de dois corações apareceu todos os dias desde então, e hoje eu vejo que ele correu atrás de mim pela Paulista.
Não me deixe morrer assim, pelos corações unidos, pelas sensações que eu deliberadamente assassinei, leitor.
Acredite em mim, ele existe e eu sei que me olha agora. Dois olhos, profanos, nascidos da perfeita simetria de corações orientados ao norte e sul.

sábado, 10 de julho de 2010

muito grato

“Homem de respeito não anda por essas bandas. Não, não é preciso se adesculpá; aprecio somente uma meia volta e uma bela corrida pela estrada de volta ao lugar de onde nunca deveria ter saído. Rápido, de preferência; na verdade é preciso considerar que o sinhô não possui muito tempo para cumprir essa tarefa que lhe foi delegada”.
Tanta erudição estranha para matar um homem. Tanto rodeio para transformar a vida do caboclo em uma ida para o céu mais florida na conversa.
Sem precisão de tudo isso. Nada. Na hora que há de vir só quero um Pai Nosso e peço desculpa a todos: aquele “pede desculpa pra mãe, e desculpa qualquer coisa ocê também”.
Mas o homem que eu falava antes correu e tentou a sorte. Conseguiu. O outro, o de concordâncias estranhas, ficou contente por que, finalmente, alguém tinha ouvido aquela erudição e ia propagar a história na tradição oral ou  literatura.
É, fui eu. O homem de respeito que pisou no lugar errado. Consegui, e a partir desse momento senti uma bela de uma gratidão pela vida; tanto, que jamais virei a estrada do jeito que fiz naquele dia de noite sem olhar para onde se ruma ou olha a placa.
Sou grato pelos homens amedrontadores e eloqüentes, eles me disseram algo que jamais ouviria na vida; desse causo, desse fato, a partir daí, me tornei um homem que fala manso-bonito... e, sempre, aconselho todos a fugirem do meu caminho. Entende?

sábado, 3 de julho de 2010

a chama

Talvez seja um troço meio besta...
Sim, pensar no dia de amanhã. Sim, voltar a cabeça no meio da noite para pensar na agonia do dia fudido que será quando eu levantar a cara cheia de marcas de travesseiro para sorrir para o mundo. Sim, será errado pensar no amanhã, livros de auto-ajuda e outros papéis escritos sem um pingo de alma. Será difícil pensar no dia de amanhã quando eu não tiver outra coisa a fazer a não ser me masturbar até sair sangue pelo pinto, ou apagar as cruzadinhas para fazê-las de novo. Não, não há um pensamento bom em ligar o amanhã às coisas felizes e promissoras de final de filme previsível; se está bem, provavelmente será o mesmo; se está uma merda, federá um pouco mais, quase não dá para perceber...
Há as variações: dias que não acabam ou a promessa de algo melhor, como naquela mão que você ganhou na última carta sendo virada. Isso é a vida, não há uma mistificação nela, caralho, não há um pensamento bom no amanhã a não ser insistir em guardar a chama que Hank disse; essa chama que a gente tem que guardar na palma da mão e sabe que um dia estará lá, forte. Pode ser amanhã ou não: o lance é se surpreender se for amanhã, cara.
É bem assim.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

bloco da distopia 2010

"If you want a picture of the future, imagine a boot stamping on a human face— forever."
George Orwell, 1984


Eu sou assassino.
Comecei assim, matando uma coisa, outra...
Fui matando, matando, matando.
Hoje privatizo, aumento, mando, atiro, furo, afogo etc.
Eu sou assassino.
Eu sou um filho da puta de um assassino. Volta e meia mato alguém, mato mais que pirata sanguinário ou grupo de extermínio; tenho mais votos que você para síndico do prédio ou a próxima capa da playboy.
Eu sou assassino, não mando matar, mato: meto a faca, não emprego terceiros e minha vontade é soberana na fina arte do assassinato. Mato a tudo e a todos. Sou um anjo purificador da cidade, mato, mato mesmo. Mato Chico Picadinho e Cabo Bruno e fodo a sua mulher com a minha pica. Mato, enterro, boto mais gente nos buracos de terra, promovo reuniões familiares em velórios, forneço emprego aos jornalistas de obituários: vou à forra beber caipirinha no boteco enquanto todos se divertem, pois eu promovo a diversão e delego heranças aos injustiçados que esperam um troco. Eu sou assassino, mato você, sua mãe, seu cachorro e a empregada que está fazendo a sua comida, eu mato gente em Wall Street e não discrimino o social: a morte em minhas mãos é um serviço público ao qual você é meu cliente preferencial, pois eu mato gente a dar com pau.
Mato empresário, mato índio, mato preto, mato japonês, mato chanceleres, mato a sogra. Mato.
E você?O que faz para me criticar? Sei o que faz, seu puto: vive atrás de uma porra de uma tela de um computador e não faz porra nenhuma, enquanto eu mato a sua namorada e coloco você no seguro-desemprego e alcoolismo; fica nessa porra de computador dizendo aos quatro - ventos que é fodão e mete bem, que come a mulherada e sua popularidade em frente sua turma é incondicional; é revolucionário, é politizado e o seu intelecto é tipo o pau de Rasputin: tem que estar num museu.
Pois é, seu metidinho de merda, eu vou continuar matando enquanto você escreve; e suas palavras não significarão nada enquanto uma pessoa guincha de dor que nem um porco sangrando e eu olho na cara dela e digo:
-Vou acabar com a sua raça.
E eles vão, eu fico. Eles falam, eu permaneço; eles criticam e eu me firmo na história; preciso de biógrafos e muita pesquisa. Você, você precisa de um tio arruinado para te pagar o caixão mais barato feito com caixas de cebolas do Ceasa.
Eu fico. Vocês se vão.
Vocês, seus merdinhas metidos a fudidos intelectuais, se entopem de merda e cocaína vendo meus crimes numa TV LCD´42.
Vou acabar com a sua raça, seu filho da puta. 

terça-feira, 25 de maio de 2010

latrina veritas

Interrompemos a sequência de textos infames para comunicar a inauguração de um projeto que já estava engavetado na mente há muito tempo:
http://www.fotolog.com.br/latrinaveritas
(desemprego pode proporcionar algumas coisas na vida...)
Fotolog de banheiro sujo: poesia, filosofia, arte e expressão em ambientes imundos e pouco convidativos. Pega uma caneta e escreve nessa porta também...
Deixar marcas é algo importante.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

inominável, o irmão de violador

Vou engolir todas as penas desse bicho morto na sarjeta. Ele, pobrezinho, teve uma morte horrível, esmagado por um carro de um homem tolo que corria apressado para o escritório. Por isso acho que mereço engolir todas as penas numa amálgama de lixos e santos; devo me tornar parte algo, de uma alma que tocou o céu para me purificar nessa existência. E vou gritar desesperado até todos aparecerem, e quando me prenderem vou dizer que foi por sua causa que perturbei a ordem das madrugadas.
No fim, coloquei a culpa em mim mesmo. As palavras se transformam nas mãos de hábeis advogados. Habbeas corpus; Nemo me impune lacessit, Poe!
Enlouquecer...
Já pensamos nisso não é, Humanidade? Foi assim que aconteceu. Desse jeito. De um pensamento, testemunho de noites ou infortúnios, o homem desceu mais fundo que Dante e contaminou o mundo com a indesejável e infértil insanidade esterilizando a paz dos sorridentes. Eu já fui feito para a cura, já servi a propósitos considerados mais nobres que a própria existência; eu já fui experiência e Mengele deu um beijo no meu cérebro durante uma trepanação enquanto comia scargot com alcaparras naquela noite no interior longe desta cidade.
Ele chorava...
Certa vez cruzei com os desgraçados das ruas que entornam uma cachaça em busca de uma morte lenta, esses, cruzam com as asas leves da madrugada batendo o ar e soltando palavras desconexas para os que correm no Centro de Gotham, esses que vos divertem em passagens turísticas pela nossa arquitetura gótica. Vi a noite da forma que vocês não suportariam, sobrevivi; e pelo castigo desse feito me tornei um deles. Inominável é o meu nome: aquele que causa a náusea e o desconforto. Sou a imagem letal de excesso, ópio e fúria que a sua psicanálise implorou para nascer. Não me agüentam. A minha imagem é mortal para os que têm sono tranqüilo. Eu sou a barata que G.H enxergou.
Sonhe comigo, pense em mim e a sua vida se acaba antes de dar bom dia para esposa, pois eu sou a personificação viva das últimas palavras dos que foram queimados pela Inquisição, e represento todas as crianças assassinadas por diversão e luxúria. Violador, o guardador das Necrópoles de Gotham é meu irmão bastardo, e ele conhece todos vocês e se alimenta do lodo de seu mundo.
Hoje desejo o assassinato de toda a humanidade, porque nesta noite eu represento a morte de todos que foram esmagados por carros, sonhos e a livre iniciativa em troca do seu conforto, encarno a vingança de forma violenta para execrar os que gozam de uma boa saúde e tem um café com leite para tomar de manhã.
Penas coladas no asfalto, brinquedos quebrados, cabeças de boneca sem olho, cachorros sem uma perna, velhas cagadas de mijo no Jukeri, abortos e caixões pequenos: Inominável é a consciência de todos que enlouquecem: quando ouvem um louco, ouvem a mim. Preste atenção ao meu canto e em breve se tornará minha voz.
Morte a todos, inclusive a mim mesmo. Ode ao homem criador acima de tudo.

terça-feira, 11 de maio de 2010

plural de morte tira o sono da humanidade

-Sem possibilidades.
-Nada?!
-Não.
O que fazer? Não, não havia mais nada o que se fazer.
Ou esperar. Sem terços ou rezas novas: nem os deuses de Asgard iriam salvá-lo do terrível fim de morrer distante dos que o amavam ou sequer se importavam com ele...
Palavras ditas pelo próprio médico. O cara foi morrer aqui no cu do mundo com a melhor medicina que o dinheiro pode pagar.
Saí do hospital meio esquisito; não, não era uma dessas tristezas poéticas que os frescos dizem sobre olhar um orvalho e lembrar de alguém, era algo genérico, mas que me incomodava. Nada me remetia a nada, porque então eu estava triste? Por um cara (que eu nem conheço direito) que ta lá numa gaveta congelando com uma etiqueta no pezão?!
Morreu. Deram três tiros à queima roupa quando saía do restaurante: dois no pescoço, outro no queixo. O médico disse que se sobrevivesse ia ficar feia a coisa, de falar estranho-fudido ou de ter que fazer operações extremas para voltar a falar direito.
Depois que a gente para pra pensar vê que “falar” é uma grande merda perto de estar morto num crime hediondo de Notícias Populares, caixão fechado e distante do seu país.
É, o cara era gringo. Veio aqui a serviço, coisa bem patética e formal dessas de cliché do mundo globalizado: sua empresa ia abrir uma filial aqui e uma noitada do inferno no Terceiro Mundo ia selar toda a transação; depois de um jantar, os felizardos iam para um puteiro secreto de luxo lá na Móoca.
Eu era o cara que deu a idéia da putaria, eu era o cara que ia se beneficiar com o acordo, mas esse não se deu porque o filho-da-puta decidiu morrer baleado na saída de um restaurante. Dizem que foi assalto, essas coisas.
-Sem novidade- disse o policial.
Ia dar página de jornal a morte desse porrinha, certeza. Reportaiada na frente do restaurante, interrogatório, especulações, etc.
Se marcar, até vão me encher o saco durante o expediente. ”Diga que não estou, Cláudia”.”Sim, senhor”.
Depois quero uma chupeta dela bem ali. Isso ia me tirar a imagem do cara ali baleado, sangrando que nem um porco pela garganta e queixo tipo Poderoso Chefão. Coisa feia mesmo.
Talvez essa tristeza misteriosa seja óbvia não é, amigo? Você perdeu um grande negócio com a morte desse gringo, não é?!
Sim.
Merda. Foda-se ele e seu pé sujo e duro com uma etiqueta tosca.

Primeira página. Na telha.
“Empresário alemão é executado na saída de restaurante.”
Em letras menores:
“Polícia acredita que crime tenha sido premeditado”.
Era o que me faltava! Bem, sei de uma coisa: não fui eu que mandei matar o filho da puta antes dele assinar a papelada!
Alemão desgraçado! Porque não foi na Limo que a gente alugou?
Daí, nesse momento de puro egoísmo, pensei que todo mundo podia ter morrido.
Primeira página.
“Empresários são executados na saída de restaurante”
Em letras menores:
“Polícia acredita que o alvo era o filho da puta do alemão”.
Alemão cuzão. Eu podia ter morrido, caralho! 

segunda-feira, 3 de maio de 2010

café

- Temos que lutar contra o totalitarismo e o fascismo; o voto é importante. Aliás, vai votar em quem esse ano?

-Eu voto nulo.

-Não sei como posso ser seu amigo, te desprezo intelectualmente; na verdade, te acho desprezível e incompatível aos meus anseios por um mundo de democracia onde o totalitarismo não deve continuar depois de tanta luta. Na verdade, não ande mais comigo: todos os meus amigos têm a mente mais aberta e votam!! Porque você não faz isso?! É um moleque!! Vai pra puta que o pariu!!! Não sei como vai evoluir num mundo onde o fascismo impera: é esse o mundo que quer para você? Um mundo onde os outros não têm escolha? Onde você é condenado por não querer o autoritarismo? Onde você é condenado por pensar e exercer sua individualidade? É esse mundo que quer para os seus filhos??! Um mundo onde te dizem o que fazer?!

sexta-feira, 30 de abril de 2010

boteco

-Saudade dos tempos de ditadura.

-Ãhn?! Você nem era nascido! E o que é isso, cara?! Que idéias são essas?!

-Ah, é só mania de dizer. Fica frio. Tô cansado de ser politicamente correto: acho que vou tuitar e ver o que dá. Acha que dá muitos seguidores?

terça-feira, 27 de abril de 2010

creta

Teseu olhou para o labirinto à sua frente...

Cansou. Mesmo. Começou a bater uma punheta.

Morreu feio. E o Minotauro ainda comeu o cu dele.

Castigo dos Deuses.

terça-feira, 20 de abril de 2010

motel

-Sou menor de idade, não se importa mesmo? Não tem medo?

-Não.

-Ninguém se importa... Porque alguém se importaria, né?! Foda-se. Tá...  Então vamos logo que eu quero o meu dinheiro, caralho!

sábado, 10 de abril de 2010

pet shop

-Eu já tive um desses. São tão bonitinhos, né?!Olha essa cara de ”Mamãe me leva pra casa”!!

-São mesmo, o Jonas vive dizendo que vai me dar um faz uns cinco anos... Mas... Me diz: o que aconteceu com o seu??Se puder, é claro...

- Ah... Uma vez assaltaram a minha casa, e os putos enforcaram ele nos cadarços do varal. O Jonas sabe dessa história, foi ele que me deu o Tico de presente. É... Saiu... 

quarta-feira, 7 de abril de 2010

um bilhete escrito num guardanapo de boteco, fim de semana, fim de noite

Tudo tá esquisito, linda.
É, a vida anda foda por aqui: pouca gente, inspiração ou vinho.
Falei de vinho e lembrei de você naquela tarde de chuva que a gente fugiu para baixo de uma árvore. Ficamos olhando a chuva quietinhos.
Depois aquele vinho vagabundo, supermercados e o teto do seu quarto com uma rachadura em formato de ovelha...
“Homem bobo” cê deve estar pensando. Pensamento normal, espontâneo.Típico.
Abençoado.
Bateu aquela coisa vazia que chamam de “saudades” (porque no plural?).
É. Bateu. E eu tô meio tonto.
Vou embora: não te escrevo mais.
Nunca mais.
Tá chovendo e eu nem tenho onde me cobrir.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

reis contaminado

A fórmula existe, Lídia?
Praqueles que buscam um suspiro de paz nas tardes solitárias a vida reservará caminhos estranhos. Caminhadas longas, cafés fortes reforçando o vício de ficar pensando nas tortuosas dúvidas vindas da boca vermelha de uma mulher.
Buscam receitas, livros e programas que ofereçam uma reciprocidade: uma alteridade em sentimentos confusos pelas teclas do controle remoto da TV digital.
Daí alguém, no meio de toda essa cacofonia, ergue-se, e uma voz corajosa e desafiadora ressoa:
-E se eu não encontrar a fórmula?E se eu desistir no meio do caminho, porra??
Um silêncio pelas avenidas sem carros ecoará e não haverá mais copos sendo virados pelo Centro.
Só haverá lugar para a incompreensão e dúvida perante o espantoso protesto dos que se sentem indignados.

sábado, 27 de março de 2010

o verão se foi

O verão se foi.
Guardamos nossas pranchas, bermudas e pipas. Hora de correr pelas ruas com cata-ventos, pular os bancos e brincar de Jedi com os galhos que caem das árvores na Praça Pôr-do-Sol. Não há mais sol, querida; não há mais o teu reflexo ou seus cachinhos de criança pela janela olhando a gente voltar da praia com os chinelos nas mãos.
Essa molecada suja, pobre com suas pranchas de isopor de supermercado que voltam domingo à noite num ônibus capenga com os amigos.
Na casa, os pais preocupados. Outros nem tanto.
Uma vez quase morri naquelas águas, nesse fim de verão.
Imaginei a morte embaixo das águas e o que eu não veria mais.
Meu papagaio velho preso no poleiro, na minha mãe-pai-irmão e bonequinhos de plástico.
O verão, Belmont.
O verão de 64, 77, 84, 00, 07 e os que virão.
Entra, lembrança! Tem um copo de cerveja com espuminha te esperando!
Uma lembrança de mãos dadas, de casal que anda de mãos dadas pela praia na chuva, um filme velho gravado numa fita cassette, um olhar para o mundo dentro da roda-gigante...
O homem de verdade atravessa tudo isso aguardando a solidão sem medo, que nem o moleque cruza os olhos para aquela janela e nunca mais vê aquela garota.

sábado, 6 de março de 2010

clark

As mesmas palavras todos os santos dias que não são santos.
Basta dizer que todas as vezes em que nos encontramos eu sentia que algo estava para ser dito, mas jamais era; e a gente ficava assim, meio que sem dizer nada. Olhando um pro outro que nem "filme bobo de romance sábado à noite".
Não foi fácil dizer que não queria mais aqueles momentos, até porque nem sabia direito o que aquilo significava: eu abdicava de um amor para escolher viver sozinho, na minha fortaleza, lugar onde os meus pais descansam agora.
Deixei de ser homem por ela, agora deixo de ser um para ela.
São fardos que o homem carrega, mas eu não sou bem um deles, mas aqui é o meu lugar e o céu que devo proteger. Conseqüentemente vou aprendendo.
Não nos vemos mais no trabalho, passo os dias amedrontado desejando nunca mais vê-la.
Impossível.
Deveria deixar o emprego também. Porque preciso trabalhar?Por quê??

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

por favor, rohypnol

Já está tarde.
Papai já foi para a cama antes de nós, princesa da minha vida.
Agora estamos sós. Como era antes de você vir para este quarto pequeno com desenhos do Pequeno Príncipe. Mamãe já te alimentava.
Nós, contra o mundo nessa noite fria, fugitivas de um destino que recusamos. Porta aberta contra a rua que não abriga mais ninguém há muito tempo. Um bairro distante, uma terra infeliz para as de nossa linhagem.
Não vai tomar friagem, não!
Papai dorme lá no quarto grande decorado com pequenos losangos que eu odiei desde o começo, mas nos amávamos e eu achava que era o suficiente. Depois as panelas velhas de herança da sua mãe morta e os panos que serviam uma geração leprosa há séculos. Acumulados em prateleiras, buracos e cantos; tecidos vadios e sem graça.
”Dariam uma bela fogueira”, a mamãe pensa.
Seguimos em frente. Contra isso. Nós duas.
Papai dorme. Deixe ele que o sono é pesado nessa noite para sempre.
Vamos dormir, querida. Longe demais daqui.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

minha cidade de sintetizadores

Há dias tentava encontrar a "peça". Achei lá no meio da pista quando rolava “True Faith”.Todo mundo balançando a cabeça, curtindo a música, entrando aquele baixão, e eu lá olhando a cara dela na hora do crime.
Baixão animal.
Deixou cair o batom quando meu viu. Lábios grossos que já beijei muito.Tinha essas coisas de se maquiar toda hora, gostava: era uma mulher que ficava demais com aquele bocão vermelho de sangue, coisa rara em mulher que se emperequeta demais.
Ela me olhou lá no meio daquele pessoal, tocava uma música irônica, né?!Lá, lá tocava a música alta e as pessoas pagaram para dançar um pouco, “se libertar” eles dizem; eu, eu paguei para encontrá-la ali no meio da pista em meio àquele momento de deleite meu. Só meu, não das pessoas dançando, beijando, ou bebendo: meu deleite.
-Caralho...
Ela não falou. Li os lábios.Grossos.
Era para eu não estar ali naquela hora, ou momento, ou ano.
Ou país. Azar cruza com a gente toda hora, querida.
-Te achei.
Ela leu também no meio daquele barulho: era melhor que eu nesse lance de leitura labial. “True Faith” rolava, só aquela parte final do sintetizador: lindíssimo, cara.Lindíssimo.
Ela balançou a cabeça de medo, azar, sei lá. Começou a rolar um “Killing an arab”.
Te amo, DJ.
Dançamos muito essa lá no Madame Satã umas vezes, chegávamos em casa e eu colocava um Depeche Mode “The  Meaning of love” e a gente tirava a roupa com raiva, e a coisa saia como tinha que sair.
Saia. Entrava.Machucava de bom.
Eu brincava com facas naquela época e ela gostava, tanto, que aprendeu o ofício.
Gostava de ter o corpo tocado pela lâmina gelada, não tinha medo. A gente brincava, tudo era permitido.
Daí, de tanto eu brincar com facas, fiquei de castigo um tempão num lugar meio frio, ganhei umas tattoos novas nesse pico.
E ela era meio que a causa de tanto tempo com o chapéu de burro na cabeça. Mudou, cresceu, brinca com dinheiro de gente grande; creio que ela acha essa nova brincadeira muito mais “entretenimento” que a minha.
E eu achei ela ali: era a peça que faltava.
Riu de um jeito engraçado, de medo, sei lá. Como se soubesse que ali era difícil de fugir de mim.Gostei dela nesse segundo.
Não sei explicar, mas desisti ali (naquele momento) de castigá-la como eu fui na intenção.
Chegou um cara abraçando ela. Ela, gelada, com a cara fixa em mim, como se tivesse segurando um tesão; um gozo vindo subindo pelas pernas longas dela.Pernão de mulata animal ela tinha.Tem.Mantém.
O cara percebeu. Eu sorri.
E começou a tocar “Stop me if you think that you heard this one before”. A gente dançava muito essa olhando pro chão, pra lá e pra cá.
“only slightly less that I used to, my love”.
-Vai embora, sua vadia.
Ela entendeu. A cidade era minha de novo: para eu ficar em paz ela tinha que ir embora.
No final, foi uma troca justa.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

con ti se va mi corazón (ou como nos tornamos reis) parte VI e fim






VI

A mais bonita de todas.
Jane, a “Christine sem a doçura”. Orgulho da beleza dos Bennett.
Beleza que não a salva do poço sem fundo da decepção do amor por Bingley que a abandona indo com as irmãs para Londres. Sabe, Jane não possui a grana necessária para surgir uma aliança blasé insuperável, portanto, as irmãs que a odeiam fogem com o irmão para Londres, longe de tal perigo.
Respiro, devo “estar lento” como diziam no meu bairro. Cá estou eu suspirando de pena por uma jovem que vê sonhos de algodão bestas demais sendo esmagados com a crueza do mundo.
Assim, a bela Jane vai conhecendo aquele fundo de espuma no copo que eu olho agora, só que o meu, vai descendo enferrujado há muito tempo nesse lugar. As páginas se desfazem. Bingley está longe. Christine está perto, lá embaixo acessando e-mail no notebook, vendo programas idiotas. Os nossos corações, Jane, se vão com eles, lá embaixo.
Aguardamos uma carta de Londres, Jane. Lá embaixo na cama, a TV tá alta, Christine ri alto como eu não ouvia há muito tempo. Nossa, há muito tempo mesmo. Um riso alto demais, arrepiante.
Que ecoa.
É o silêncio todo num sábado à noite. Risos dela.
Largo o livro por um momento pensando o que pode acontecer a Jane.
Mas...
O sótão carrega uma coisa pesada essas noites em que mal nos falamos, e o riso alto e debochado dela provoca um troço estranho em mim. Fico pensando nas noites que passamos assistindo TV e comendo pizza na nossa primeira casa.Um riso nos campos verdes do interior, várias épocas depois um riso ecoa, páginas nas minhas mãos e a indecisão de gritar para ela o que eu estava descobrindo.
Mas o que eu descobri aqui nesse sótão cagado de bosta de rato?
Largo o livro, beijo as páginas amarelas que me salvaram de não perder a cabeça; Jane, não beije as cartas da irmã de Bingley, essas cartas carregadas de veneno.
De repente, aquele impulso de ver Christine passa. Deito. Pego as páginas e volto a ler, pouso os olhos naquela letra arcaica e linda. “Não sei se a autora é bonita”- penso.
-Vem ver, querido!Tá passando aquela reprise do Saturday Night Live do presidente Reagan, lembra?!Vem!
Fico olhando ela assombrado. A minha imagem é patética. O cenário, igualmente.
-Nossa, que lugar desgraçado esse que você tá escolhendo para fugir de mim, hein?!
Diz isso linda, de um jeito divertido, como se a imersão naquela ficção fosse improvável, um conceito de filme de ficção-científica, uma piada de mau gosto.
Levanto calmamente e dou um beijo na testa dela.
Ela me abraça de um jeito caloroso, que demonstra não ter acontecido nada nesse tempo.
Acho estranho. Não retribuo o abraço caloroso que ela me deu, fico ali, tenso, demonstrando o orgulho dos velhos homens de escudo, sou um pouco Darcy, analítico-doentio em busca de uma retribuição por todo o meu sofrimento e confusão, por tentar amar ela novamente nessa casa. Por sofrer sozinho.
Ela sente. Me empurra com uma violência sutil. Sai andando com raiva.
Foi rápido.
Uma porta bate com força. Ecoa.
Estou me sentindo idiota. As páginas se desfazem.
Pouso o olhar nas páginas que estavam ali no chão, demonstro preocupação em ver elas ali tão abandonadas, “podem estragar, soltar a cola”. Me preocupo. Continuo me sentindo mal, idiota.
Volto a ser o rei de toda essa poeira que deveria ser queimada e esquecida pelos homens de escudos. 


                                                        fin

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

con ti se va mi corazon (ou como nos tornamos reis) parte V


A lâmpada do sótão balança, moscas voam. Noites se passam.
Merryton na minha cabeça. A pior coisa que pode acontecer a uma família vitoriana é perder o seu lugar de conforto para um primo puxa-saco de nobres, metido, incrivelmente irritante; e que acima de tudo, pode te deixar na rua com seus pais velhos sem banquetes intermináveis.
Assim entram as filhas lindas na busca de um marido, para ajudar no destino dos pais, mas me parece que não é uma procura sem sentimento pelas meninas; acho que tem algo a ver com certo cuidado de destino “adaptável” da parte delas. Fico com pena do pobre senhor Bennett, dotado de um sarcasmo incurável e que parece ser um ótimo parceiro para conversar em bares. Lembra meu papá, que se foi numa cama dizendo que queria me ver em faculdade americana.
Lizzy jamais casaria com um idiota desses. Mas a casa anda em risco, sabe...
A nossa casa não tinha esse risco, foi herança do tio de Christine. Era a salvação do nosso casamento no meio do mato, um sarcasmo digno do senhor Bennett e de papá.
Podemos dizer que o tio de Christine é um pouco parecido com esse primo dos Bennett, o senhor Colllins: o Sr McKegan foi um ex-pastor anglicano que andou a América de norte a sul pregando para pessoas entusiasmadas, mas não foi a religião que o consagrou, e sim, sua perícia como veterinário renomado: seu nome está em todos os artigos respeitados na medicina dos sabujos caçadores de raposas.
Christine dizia que o achava quieto demais.
-Ele se parece com essa casa, isso aqui tem o cheiro dele. -disse uma vez com certo nojo.
Então, chega esse tal de Collins, pouco sociável, chato pra diabo e de inspiração ridícula; vem colocando o perigo de reivindicar sua casa; Lizzy talvez sendo sua esposa, acalme o delírio de poder do primo com a sua mão em casamento. Assim, Collins poderia deixar a casa para o velho Senhor Bennett descansar em paz na sua biblioteca, assim como o Sr McKeegan deixou para a sua sobrinha querida.
Obrigado, Tio McKeegan.
Bela cerveja inglesa enferrujada o senhor tem.

sábado, 16 de janeiro de 2010

con ti se va mi corazón (ou como nos tornamos reis) parte IV


IV
Não chego exatamente a criar uma aura de tristeza e desespero vendo Christine ir embora da minha vida numa casa que acabamos de herdar de seu tio, olho, respiro fundo; ela passa ali de vez em quando na sala de camisola, desce ao banheiro e confunde as luzes novas da casa: eu já decorei todas, gosto daquele lugar e explorei ele todo. Não me sinto triste e acho isso perigoso.
-Ok, vamos acabar a nossa história no meio do mato. -disse uma vez para ela dormindo.
Se eu fosse um inglesão com crise no casamento, daria um baile com mulheres de decotes fartos, ou ia meter bala na cabeça de raposas com sabujos enormes correndo para me sentir distraído. Homem com escudo.
Não sei bem se seria divertido. A idéia das raposas, sabe. Já a dos decotes...
Bailes?!
Não sei dançar, não sirvo nem para ser o senhor Darcy, personagem amigo do ricaço Bingley; é um desses caras que carregam uma certa arrogância-misteriosa-simpática; mas é culto e bem educado. Eu sou bruto, filho de mexicanos pobres que cruzaram a fronteira fugindo da Migra, nasci no duro Bronx, junto com a escória que a América insiste em matar legalmente todos os dias; não sou nobre. Já o senhor Darcy é esse cara enigmático, bem nascido, que não se mistura facilmente com a nobreza - se bem que me parece que ele é mais nobre que todos os inglesões-caçadores-de-raposa.
Numa conclusão estranha, chego a me simpatizar com ele de alguma forma: ao desenrolar das páginas amareladas, ele não parece carregar um escudo nas mãos e sua habitual frieza blasé, contrasta com alguma coisa que não sei bem ao certo o que é; ele possui uma argúcia de Dr. House por ter encontrado em Lizzy um objeto de estudo para os seus momentos de devaneios solitários, um problema agradável para a sua cabeça de monstro inocentemente analítico: Darcy vê em Lizzy um alívio de ver alguém que não é óbvio.
Eu curto o Darcy porque ele sacou que a Lizzy é bonitona. É isso!
Eu gosto de mulheres que não são óbvias, Darcy. Foi assim que conheci uma dessas há muito tempo lá naquele ônibus da faculdade em excursão para L.A: tudo colorido, bikinis, óculos escuros e camisetas horríveis do Bon Jovi; e lá estava ela com o seu vestido de alcinha branco e azul, de certa forma provinciana, uma coisa linda que destoava de todo aquele exagero-yuppie-eighties; carregava no ombro uma bolsa toda estilizada com uma pintura estranha de um velho esquisito.
Depois de um tempo, fui saber que era de William Blake.
Ignorante de Literatura que sou, dando vida a paginas velhas agora...
Essa visão despreocupada dela foi o bastante para mim, me provocou, igualzinho ao senhor Darcy olhando um monte de gente aparentemente sem graça em Merryton; aquele ônibus foi o meu baile barulhento efervescendo inconseqüência em que eu observava os movimentos da dança com cuidado. Se fosse rápido, óbvio, passava tudo rápido.
Não deixei que isso acontecesse.
Ajeitei os óculos escuros de praia naquele dia e reconheci que estava perto de alguém que me intrigava. Foquei nela, a que não era óbvia, senhor Darcy.
Quando contei para os meus amigos sobre a moça de vestido azul e branco na parada que o ônibus deu em um pub irlandês, ninguém me apoiou: zoavam dando baforadas de cigarro na minha cara porque ela não era óbvia.
Não me importei, ao contrário: deu coragem, tesão.
Lá nos conhecemos melhor e nos beijamos nesse lugar que se chamava Bloody Irish: o nome de várias coisas importantes que exaltávamos em nossas vidas ao longo da nossa história; era o filho que não tivemos, era um nome só nosso. Um lugar.
Era a antiga senha do computador.
Hoje, ela usa o seu nome na senha. Desconfiei que podia ser.
Por isso entrei fácil no notebook, por desconfiar que pensasse só nela.

domingo, 10 de janeiro de 2010

con ti se va mi corazón (ou como nos tornamos reis) parte III


III

As páginas se soltam. Desfazem. A cerveja tem mais gosto de ferrugem a cada noite que passo com esses manuscritos na barriga.
O cheiro é intoxicante. Preciso limpar a sujeira do sótão. De algumas coisas.
Uma página rasgou na segunda noite, foi ali, na minha mão que aconteceu. E me deu um troço estranho de respeito, como o pai de Lizzy que tem um certo apreço por seus momentos na biblioteca particular. Me perguntei por que um velho tem tanto apreço por um momento com livros, foi um questionamento relâmpago, um resquício de uma coisa besta que nascia dentro de mim.
Então, senhor Bennet, hoje eu entendo. Livros podem ser a cerveja enferrujada que desce goela abaixo em dias de inverno nesses campos verdes vitorianos.
Com essa catarse vergonhosa de crise de meia idade, encerro um pensamento que julgo importante; e ainda fico preocupado com o rasgo no livro. Tô velho mesmo...
E gostando do livro.
Na segunda noite de leitura, eu levo uma fita especial para atar as páginas velhas em respeito à Elizabeth (e porque não, sua família). Fui numa tarde no Maine em busca de algo para consertar o que vinha me salvando. Pesquisei na internet sobre a fita especial para reparar páginas, lá, no notebook sagrado de Christine...
Aguardo respostas e as páginas (já restauradas com a fita especial) não se soltam mais com facilidade. É um tesouro nas mãos de um plebeu.
Christine só me perguntou se eu tinha usado o note. Disse que sim. A senha não era mais o nome do bar em que nos beijamos pela primeira vez.
-Mudei faz tempo, não faz drama por isso. -disse ela, colocando os óculos.
 “Dramático” - sou um dramático agora.