segunda-feira, 2 de março de 2009

escarlatina (I)


Eu disse alguma coisa no meio de todo aquele barulho no café, só que eu não me lembro muito bem o que era.
Corri, peguei o bonde e lá estava ela com aquela cara triste na janela olhando as crianças brincarem na rua sem dar um sorriso.Ah, sempre nos cruzamos naquela hora e eu corria para o meu destino patético: ficar olhando para ela de uma forma segura sem necessariamente me esforçar para ter um contato ou um sorriso; isso desequilibra tudo, o simples fato e bendito consolo é pegar o bonde com ela e roubar um momento seu.
Ela, naquele tédio mortal que dissolveria o mundo num amargo cínico e afogaria todos os bichos, crianças e coisas bonitas num olhar.Ela pode tudo porque desse jeito parece bonita, uma daquelas deusas cheias da vida eterna anseando por um punhal no ouvido batendo no seu crânio, à espera de um barulho, uma bomba explodindo pelas janelas do bonde que passa rápido...
O tédio dela me consola de todo o dia ruim que tive e de todas as pessoas que me olharam na cara e fingiram ter algo nobre (nem que seja um sentimento) ao olhar esse rosto magro, feio e distante.Gostaria de convidá-la para bebermos um veneno leve, desses que não matam, mas causam efeitos colaterais desagradáveis como vômitos, náuseas, tonturas, delírios e alucinações.Uma bela noite no hospital, lado a lado, maca a maca, um segurando a mão do outro dando risada da imortalidade tediosa.
É isso!Somos imortais: os desejos, sonhos e aspirações nada mais são do que o prolongamento sofrido de uma existência nula em que nos esforçamos para ter algo que nunca alcançamos e se o dia chega, queremos mais; existir é uma coisa chata, imbecil e parva.A gente não morre várias vezes na vida, vai vivendo e arreganhando os dentes como se o cavalo fosse bonito e o páreo pagasse bem.
A bela do bonde sabe disso.Não se esforça, cansou de viver e não necessariamente vai tomar veneno de rato: vai fazer o mundo todo tomá-lo e ver todos tombarem.
Um dia eu quero ver o que provoca um sorriso nela, talvez uma carcaça podre estirada nos trilhos ou um ser humano convulsionando pela avenida traga um sorriso; todos sorriem, se tem algo de humano na vida, esse é o sorriso.
Ela me intriga; paguei mais um mês de aluguel para pegar o bonde com ela às 5 da tarde pontualmente.
Será que me atrevo a prolongar a viagem e ver onde desce?
Não.A mágica acaba, a imortalidade toma forma, melhor não.
Lá no café dizem que sou um pessimista, mas como podem afirmar isso se pouco ouvem a minha voz naquele antro de alienação?E porque estou lá?Ah, para rir de algo com certeza, não de mim mesmo; esse esporte já percorri com grande mérito nas pistas.Pessimismo?Ora, os que aqui estão dizem algo por mim?Eu mesmo vejo a vida de uma forma particular e não espelho minha crença nos homens.
Dias chatos, calor insuportável: dizem que Luiz Carlos Prestes passará por aqui e que diabos tenho eu com isso?
O bonde, esse é o meu deus, o que rege as minhas horas e todos os meus anseios.Mais alguns meses de aluguel, quem sabe a herança de titio acabe nessa cidade esdrúxula que deveria ser devorada pelos corvos a qualquer momento.Há tempos não penso em outra coisa.
Numa bela sexta feira tomei mais scotch que imaginava à tarde no regato dos vagabundos, bebi calado e agüentei palavras até o líquido maldito descer pela goela e colocar aquele que não fala para gritar na minha mente.A mente gritava:
-Ah, ela é linda.Ela é a minha mulher, como eu a quero entre os meus lençóis amarrada com cetim da viúva, como eu a ....
E a mente gritou dentro de mim, até as coisas que guardava para mim com vergonha de ser tão humano e comum.E fui no bonde às 5 da tarde.Ela, lá.
O bonde corre pela avenida e vai descendo o correio, cemitério e as galerias da Lapa, ela, se levanta.
Descemos.
Caminha rápido, com as pernas trançando devo me esforçar para alcançá-la.Percebo que ela é baixa e mignon como as moças de cabaret, seios firmes e duros.
Caminha, corre.Entra numa mansão sem nenhuma iluminação, um breu infernal no seu castelo de Spleen.
Ela não fecha o portão.Estou atrás.